sexta-feira, 3 de junho de 2016

COMO EU CRIO HISTÓRIAS


Ser narrador não é exatamente um trabalho fácil. Cada livro de RPG já te previne disso nele mesmo falando das obrigações do narrador "Conhecer as regras, preparar jogo, gerenciar a mesa" etc etc etc. Obviamente não é nenhum bicho de sete cabeças (hydra?), mas demanda algum esforço.


Conheço mestres que desenham cada mapa detalhadamente, preparam cada pequeno aspecto do jogo (o que é bem trabalhoso) e conheço mestres que funcionam na base do quase completo improviso. A maioria provavelmente trabalha com um meio termo. Eu trabalho. De modo geral o enredo pra mim é o mais importante, o resto é improviso. Claro que tem suas falhas, mas funciono melhor dessa forma. Segue abaixo alguns passos que eu costumo seguir ao criar uma aventura/campanha.



Passo 1: Enredo

(é mesmo? não diga!)

É, é mesmo, digo sim. Já comecei várias sessões de jogo com uma ideia apenas, "O grupo vai ser contratado pra pegar uns bandidos de estrada" ou "Um grupo do Sabá vai trazer problemas pro grupo por causa de conflitos com seus criadores" ou "O tempo está se desfazendo porque um bando de vilão idiota decidiu mexer com magia que não entende e os jogadores terão que fazer alguma coisa - tipo juntar partes de um artefato mágico espalhados pelo cenário e protegidos por inimigos para desfazer a zorra toda, ou algo assim" e o jogo foi dai em diante, boa parte no improviso.


Também já comecei sessões sabendo cada detalhe do que eu ofereceria no jogo. Mas o mais importante de tudo é o enredo. O RPG é uma forma narrativa, como qualquer outra, então quando eu tenho uma ideia e começo a trabalhá-la para usar em jogo eu penso comigo "Eu assistiria isso se fosse um filme, uma série, leria um quadrinho ou livro e ficaria satisfeito?" e se a resposta for positiva, estou no caminho certo. Se não... melhor começar de novo.

Vale observar que sessões one shot se enquadram melhor na comparação com filmes e campanhas longas, com seriados. Uma sessão one shot que tenha informações demais para os jogadores levarem em consideração proporcionará uma sessão massante e uma campanha longa com um enredo muito simples, sem profundidade, side quests ou reviravoltas, parecerá simplesmente fruto de preguiça ou infantil. Geralmente o quesito "livro" pode se encaixar em qualquer um.


Passo 2: Condução, Preparação vs Improviso

Obviamente um jogo ganha em qualidade quando se dedica um tempo em elaborá-lo, mas nem sempre isso é exatamente possível, seja porque o grupo criou uma side quest pra si e desviaram do enredo principal - ou pior, porque o jogo está confuso e não sabem o que fazer em seguida -, porque os jogadores chegaram de supetão na sua casa querendo que você narre ou porque simplesmente faltou tempo ou criatividade pra preparar.

Pra começar, capacidade de improvisar se adquire praticando. Então não deve temer ir tentando. Improviso pode fazer uma boa sessão, ou uma divertida ao menos, mas um bom jogo demanda mais do que isso. O improviso pode causar incoerências e contradições, portanto é importante prestar atenção nisso. Se vai realmente improvisar, faça que não seja algo ligado ao plot principal, se não pode ver seu trabalho indo para o brejo por incongruências e até mesmo por permitir, sem perceber, que os jogadores façam coisas importantes sem o desafio adequado (isso acontece com mais frequência quando o mestre está com sono). Mas esse não é o único, ou pior risco que se corre com o improviso, mesmo porque os jogadores não gostam e nem devem ser limitados de forma ditadora pelo mestre, mas o pior mesmo é ter uma trama bacana em mãos, com os jogadores envolvidos e por descuido do mestre ela se desenrolar de forma esdrúxula bem abaixo da qualidade do jogo. Então, se perceber que não está preparado para lidar com tal questão do jogo, assuma. Claro que pode-se interromper a sessão alegando falta de preparo, mas um trombadinha levando a carteira de um dos jogadores, uma pessoa desconhecia fazendo acusações contra alguém do grupo inesperadamente ou uma briga na taverna normalmente resolvem eficientemente o objetivo de desviar (só um pouquinho) do momento o qual você como mestre gostaria de estar melhor preparado.

Como disse anteriormente, eu uso o meio termo entre o preparo total e o improviso total. Decido o que vai rolar de principal na sessão, quem está envolvido, os locais onde podem acontecer, e o resto eu improviso. Se o grupo decidiu não entrar na caverna atrás da criança desaparecida que eles nem mesmo tomaram conhecimento ou não se importaram, bola pra frente, em algum momento no futuro é só fazer com que os jogadores, ou um deles, se importe com alguma criança pra então sequestrá-la também e quando o grupo for atrás encontrar uma pilha de cadáveres.


Um preparo básico é importante. Nomes de NPCs importantes, personalidades, acontecimentos que se desenrolam no cenário - alguns dos quais podem ter tempo limitado para os personagens se envolverem e outros não. O grupo permanecendo em algum lugar por muito tempo ou voltando para ele com frequência, seja um castelo ou cidade ou masmorra, é bom ter pelo menos um esboço do lugar.


Passo 3: Liberdade vs Foco

Algumas histórias, mais frequentemente as one shots, são bem fechadas, seja porque os personagens estão presos em algum lugar com a impossibilidade de evitar os problemas que se seguem ou seja porque estão ligados a eles de forma que não possam fugir. A verdade é que em sessões assim, preparadas normalmente para eventos (ou não, mas mantendo a mesma lógica) o narrador tem uma história para os jogadores e se eles não a seguirem não tem jogo. Mas isso não é necessariamente algo ruim, inúmeros filmes seguem essa lógica, normalmente filmes de sobrevivência ou de terror: "Enigma de outro mundo", qualquer filme do Jason ou Freddy Krueger, "Maze Runner", dentre MUITOS outros são assim. Tem a sua função e a cumpre bem, em sessões únicas, não há muito espaço para ficar se desviando.


O problema é quando, mesmo em campanhas longas com tempo e espaço para o desenvolvimento dos jogadores o mestre trava quando o grupo não faz o que ele quer. Importante lembrar que quando preparamos uma sessão de rpg não preparamos para nós mesmos, e sim para o grupo, que pode levar o jogo para lugares não planejados. Quando acontecer, use de improviso e lide com isso, você não cria a história sozinho, mas sim em grupo. Eu já fui agraciado várias vezes com o grupo lidando com os desafios do meu jogo de forma que eu não tinha imaginado e ainda mais legal do que qualquer cena épica que eu havia planejado.


Parte 4: Enredo II, inspiração

Como diz um amigaço meu "No RPG nada se cria, tudo se copia" e essa é a mais pura verdade. As histórias nos vem em referências de outras narravas e até mesmo em acontecimentos reais. Então use e abuse disso Assistiu um filme que te deu uma ideia legal? Adapte-a e use-a como se não houvesse amanhã! Você está narrando D&D mas queria usar uma ideia que tirou do filme "O sexto sentido"? Divirta-se e que os deuses tenham piedade do jogador que você pegar para pagar de maluco/vidente. Você quer misturar "Buffy", "Jovens Bruxas" com o clima "John Constantine" no seu jogo? Por que não?

É importante, como narrador, estipular os limites do seu cenário, para não entrar em contradição nem correr o risco de fugir de sua própria proposta. Os jogadores não precisam saber de nada, eles descobrem no decorrer do jogo. Se você não delimitar para os seus jogadores o seu mundo eles poderão ser surpreendidos e não se incomodarão com alguma reviravolta. Mas se você disser que é um jogo clássico e feliz de "salve a princesa dos bandidos" eles provavelmente vão se sentir incomodados em encontrar a princesa sacrificada em um ritual maligno e se vendo obrigados a irem pro inferno para recuperar alma dela. Então ao descrever para os jogadores que tipo de jogo é, seja genérico quanto ao tema, talvez sugira algumas referências de filmes e séries, mas deixe em aberto os limites. Eles existem, mas os jogadores não precisam saber quais são.

E acima de tudo, não custa repetir, use tudo. Qualquer fonte de inspiração, seja filme, livro, desenho, serie, manchetes de jornal, seja histórias de família, lendas urbanas, o que for, achou interessante, pensou "Hum... posso usar isso" use! As idéias não vem do nada, elas vêm de referências, mesmo que você não perceba. Eu já narrei sessões seguidas de Ravenloft (para quem não conhece, um cenário de terror de D&D) usando referencias e antagonistas baseados em contos de fadas, e os jogadores  ao perceberem isso se divertiam. Embora houvesse um que nunca pegava as referências.


E clichês, eles tem seu uso. Quando usados demais fazem o jogo ser um grande clichê sem graça, como incontáveis filmes que tem exatamente os mesmos tipos de enredos e até mesmo de cenas. Mas eles (os clichês) existem por um motivo e usados de forma moderada não só se tornam uma ferramenta para o mestre como é divertido para os jogadores. Um dragão atacando uma vila? É um clichê, mas esse dragão pode muito bem ser o SEU dragão, estilizado e com seus próprios propósitos. Crianças que contam que tem um homem do saco levando meninos e meninas de rua? Clichê, mas pode dar uma grande história. Só não abuse dos clichês, se não seu jogo se transforma em algo ridículo.





Parte 5: Sistema

O sistema de jogo é uma ferramenta para que a narração da história aconteça e deve estar do seu lado. Do lado da sua história. Pode ser muito bem que o sistema não lhe interesse ou ao seu grupo de forma que qualquer um serve, basta mudar umas coisinhas. Isso serve bem quando o grupo não tem acesso a muita variedade ou mesmo quando o grupo não tem interesse em ler livro atrás de livro. Ter uma carta variada de sistemas é algo que vem com o tempo, não de uma vez só. Mas saiba que existem variados sistemas e pode ter certeza que existe um que favorece a história que quer contar, seja porque ele já prevê ideias que você teve (como um sistema dedicado a um cenário de terror ou um sistema dedicado à super poderes ou mesmo um sistema altamente genérico e focado mais na narrativa do que qualquer mecânica) seja porque te dá idéias ou mesmo porque tem uma mecânica adequada ao estilo do jogo.


Outra coisa que é comum de acontecer também é que você tem uma ideia ou desejo "Quero narrar uma história de terror" e dai começa a pensar em cenário, opções, regras, etc. Apesar de ser bem divertido criar um cenário próprio, acontece que uma equipe já passou meses ou anos criando um jogo com essa temática (as mais variadas possíveis). Vale a pena conferir antes de ter o trabalho de criar tudo do zero. Principalmente para economizar tempo.

Algumas sugestões:

Terror/Realista: Storytelling
Fantasia Medieval: D&D, Dragon Age
Aventuresco genérico: Savage Worlds
Regras para ficar parado ou teste pra saber se vai evacuar depois de uma refeição: GURPS
Sistema genérico simples: Castelo Falkenstein



Parte 6: Protagonismo

Outra questão que pode ser óbvia, mas alguns narradores ignoram: Os protagonistas da história são os jogadores, não os NPCs. É terrível você criar um personagem e se dedicar a ele só pra perceber que ele é o side kick do NPC fodão. Se na sua história os jogadores não são os protagonistas nem mesmo nas próprias histórias, pode ter certeza que eles ficarão bastante descontentes.



Por fim: Divirta-se



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